Comissão Técnica de Piscicultura do Nordeste (1932-1945): Laboratório e Campo na construção do saber científico

 

Emanuel Rodolpho Moura Batista de Oliveira[i]   

 

A Comissão Técnica de Piscicultura do Nordeste (que daqui em diante citarei como CTPN) foi criada em 1932, durante o governo Vargas, com a missão de promover o processo de “peixamento” dos açudes da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS). A prática do “peixamento” consistia basicamente em aclimatar, adaptar e reproduzir artificialmente espécimes de peixes não originários do local no qual estavam sendo introduzidos. A intenção deste trabalho era reduzir o déficit de proteína na dieta da população sertaneja, promover o comércio do pescado, a integração nacional por meio dos usos políticos da ciência, assim como fazer presente as estruturas do Estado brasileiro em rincões do Brasil até então pouco assistidos por esse tipo de trabalho.

Subordinada ao Ministério da Viação e Obras Públicas, na pessoa de José Américo de Almeida (1887-1980), a CTPN foi chefiada pelo biólogo Rodolpho von Ihering (1883-1939) de 1932, ano de sua criação, até 1937, quando fora nomeado para o comando do Serviço Nacional de Piscicultura. José Américo de Almeida, paraibano da cidade de Areia, era o homem de Vargas para os assuntos do nordeste, formado pela Faculdade de Direito do Recife em 1908, ocupou cargos públicos desde os 24 anos de idade, foi promotor de justiça em Recife/PE, Sousa/PB, procurador-geral do estado da Paraíba, secretário de governo, deputado federal, interventor federal, escritor (do livro A Bagaceira, de 1928); chegou a ser cotado para ser candidato a presidente nas eleições de 1938, que contaria com o apoio político de Vargas se não fosse o autogolpe que deu início ao Estado Novo.

 Rodolpho von Ihering era gaúcho, natural de Taquara do Novo Mundo, filho do médico e cientista alemão Hermann von Ihering (1850-1930), se formou bacharel em Ciências e Letras pelo Ginásio do Estado de São Paulo no ano de 1901, no ano seguinte começou a trabalhar no Museu Paulista, instituição então dirigida por seu pai, onde ocupou os cargos de Assistente do Diretor, vice-diretor de custos e pesquisador de Ciências Naturais com foco em Zoologia. Entre 1902 e 1917 publicou dezenas de artigos pela revista do Museu Paulista, que versavam sobre peixes, crustáceos, organismos vivos de água doce. Uma segunda fase de sua produção científica dá mais atenção à pesquisa voltada para os anfíbios brasileiros, fósseis de dinossauros do período triássico e jurássico, moluscos, jacarés, mamíferos brasileiros, cobras, peixes brasileiros de água doce, vespas e testudinatas.     

Além do chefe, a comissão contava com mais 10 integrantes permanentes, chamados de “Assistentes de Pesquisa”, eram eles: Pedro de Azevedo (1908-1933), médico formado pela Faculdade do Rio de Janeiro, atual UFRJ, especializado em biologia e fisiologia dos peixes brasileiros. Em 1933 ingressou no Instituto Oswaldo Cruz sendo imediatamente cedido ao IFOCS para compor a esquipe de pesquisadores da Comissão Técnica de Piscicultura do Nordeste, a qual chefiou após Rodolpho von Ihering ir para o Serviço Nacional de Piscicultura em 1937. Foi um dos pesquisadores que desenvolveu a técnica da hipofisação[ii], considerada a grande descoberta da CTPN na década de 1930.

Mario Vianna Dias (1914-2001), médico formado pela Faculdade do Rio de Janeiro, especializado em neurofisiologia e farmacologia, trabalhou no Laboratório Miguel Ozório de Almeida, do Instituto Oswaldo Cruz, de 1933 até 1972, só saindo para integrar a CTPN de 1935 a 1937, onde ajudou a desenvolver a técnica da hipofisação e, em 1972, a ditadura civil-militar (1964-1985) o removeu de Manguinhos enviando-o para o Hospital Pinel.

Stillman Wright (1898-1989), geólogo norte-americano formado pelo Belloit College (1921), ficou a serviço da IFOCS entre 1933 e 1937, quando integrou a CTPN a convite do biólogo Rodolpho Von Ihering, especialista em limnologia, a área da biologia que se concentra nos estudos de águas interiores (lagos, lagoas, igarapés, riachos) e contribui para medir a quantidade de sais, fluxos de matéria e as comunidades bióticas existentes.

Alfredo Norfini (1867-1944), pintor italiano, formado pela Academia de Lucca, originário de uma família de pintores e artistas. Foi inserido na CTPN com a missão de relatar através de pinturas os procedimentos científicos, as paisagens e a geografia das paragens por onde a comissão trabalhava, foi o ilustrador científico da Comissão. A ilustração científica foi responsável pelos desenhos das espécies coletadas e estudadas, assim como pelo registro das paisagens e atividades da Comissão.

E ainda: Luiz Canale (1908-1950), médico e biólogo pesquisador do Instituto Biológico de São Paulo, que ajudou a desenvolver a técnica da hipofisação; Benedito Borges Vieira, biólogo, especializado em aclimatação de espécimes de peixes em água salobra, o que contribuía para o aumento do cultivo de peixes nos açudes com alta salinidade do semiárido nordestino; Amadeu Amaral Filho, jornalista paulista, cuja função era escrever para os veículos de imprensa os resultados obtidos durante as pesquisas, agindo como uma espécie de assessor de imprensa; Mario da Silva Ventel, prático de laboratório do Instituto Oswaldo Cruz, que trabalhou na CTPN como secretário e assistente de pesquisa; F. Diniz Drummont Jr., funcionário administrativo do Instituto Oswaldo Cruz, tesoureiro da CTPN; Dora Von Ihering, filha de Rodolpho von Ihering e sua secretaria e assistente de pesquisa[iii].

Através de um telegrama, expedido em 28 de outubro de 1932, o ministro de Viação e Obras Públicas do governo Vargas, o paraibano José Américo de Almeida, convidou Rodolpho von Ihering para liderar o grande empreendimento federal no campo da piscicultura. Assim, em 12 de novembro de 1932 estava criada a Comissão Técnica de Piscicultura do Nordeste, com os seguintes objetivos: “promover o povoamento das áreas internas do nordeste com peixes de boa qualidade, prolíficos e precoces, e defender essa fauna contra inimigos e moléstias; metodizar as pescarias e determinar as épocas de sua realização; divulgar os processos de conservação do pescado”[iv].

A CTPN tinha uma árdua missão científica, pois os recursos eram escassos, os deslocamentos constantes, o trabalho de campo e de laboratório complementava um ao outro, pois os biólogos não podiam simplesmente aclimatar espécies alienígenas nos açudes nordestinos. Era preciso investigar com todo o rigor acadêmico quais espécies de peixes conseguiriam se adaptar, sobreviver e reproduzir naquele ambiente. Desta forma, a pesquisa de campo, para coleta de espécimes, era apenas o início do trabalho dos cientistas, que se seguia de análise laboratorial das características fisiológicas, biológicas e físico-químicas, fazendo, assim, necessária a presença de Stillman Wright, o geólogo norte-americano que estudava as condições aquáticas do local de origem e de destino dos peixes que estavam sendo experimentados. A comissão tinha que catalogar o maior número possível de espécies com capacidade de aclimatação e reprodução, sendo que a preferência era para tipos nacionais, pois facilitaria o processo logístico em caso de peixamento imediato dos açudes e o processo de engorda do pescado, porque a dieta dos peixes herbívoros, por exemplo, deveria ser com plantas aquáticas brasileiras. Em setembro de 1938, o jornal “O Campo”, do Rio de Janeiro, publicou o artigo “Criação do peixe no nordeste”, de autoria de Benedito Borges Viera, biólogo da CTPN, que traz a ilustração do passo a passo da técnica de hipofisação:

 

FONTE: Borges Vieira (1938)

 

A hipofisação é uma técnica manual, que deve ser realizada onde haja tanques de reprodução assistida. Consiste basicamente em serrar o crânio do peixe, para acessar o cérebro do espécime, retirar a glândula da hipófise, macerar a mesma juntamente com soro fisiológico num recipiente e injetar a mistura no peixe, o que provoca o aumento da produção de esperma no peixe macho e a ovulação no peixe fêmea, acelerando, assim, a produção de alevinos. Com a hipofisação, cada casal reprodutor pode produzir de 30 a 40 mil alevinos por período reprodutivo, e o piscicultor não fica preso ao período reprodutivo natural, que no nordeste é apenas a época das chuvas, podendo desta forma reproduzir artificialmente o pescado durante todo o ano. Este foi o grande feito da CTPN, desenvolver cientificamente uma técnica relativamente fácil de ser aplicada por pequenos, médios e grandes produtores de peixes, e sem a necessidade um forte aparato tecnológico e laboratorial.

A CTPN teve duas sedes fixas, uma no estado da Paraíba, na cidade de Campina Grande, de 1934 a 1935; a outra e mais duradoura, foi em Fortaleza, Ceará, onde ficou de 1935 até 1945, quando a comissão se tornou o setor de pesca e piscicultura da IFOCS, órgão do governo federal e que existe até hoje com o nome de DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), que abriga a diretoria de pesca e piscicultura, herdeira institucional da antiga CTPN. A sede paraibana ficou instalada nas cercanias do açude de Bodocongó e a sede cearense foi montada no bairro Gentilandia, próximo à antiga lagoa do Tauape, atualmente canalizada na atual avenida Eduardo Girão.

Entre sua criação em novembro de 1932 e sua fixação em Campina Grande em 1934, a CTPN fez trabalho de pesquisa de campo por diversos estados brasileiros, pesquisando espécimes de rios, açudes, igarapés, lagoas e lagos. Passou pelo Rio Grande do Norte, Pernambuco (margem pernambucana do rio São Francisco), Pará (Ilha do Marajó e rio Tocantins), Piauí (rio Parnaíba) e Maranhão (margem maranhense do rio Parnaíba).

A CTPN também era responsável por metodizar a criação de alevinos, de modo a ensinar as populações locais como lidar com a reprodução assistida de peixes, pois muitos açudes eram construídos em terrenos particulares ou em parceria público-privado, o que tornava a prática da piscicultura um tanto diferente da praticada nos açudes públicos, estes assistidos por técnicos estatais de formação mais especializada. Deste modo, podemos analisar o impacto cultural e científico da CTPN pelos estados por onde passou nas regiões norte e nordeste, já que ela criou uma espécie de treinamento pioneiro em piscicultura - o que os agrônomos chamam hoje de extensão rural. A CTPN fez uso da ciência para integrar populações sertanejas por meio do uso da técnica. Mas também aprendeu com as comunidades por onde estacionou seu laboratório móvel. O uso do “tinguí”, por exemplo, um veneno natural utilizado originalmente pelos povos indígenas, chamou a atenção de Rodolpho von Ihering, que achou o método “interessante do ponto de vista científico e do ponto de vista prático”[v], pois o tinguí era lançado em águas paradas, matava os peixes que ali estava; as pessoas comiam o pescado e não tinham nenhum tipo de mal-estar, pois o tinguí só fazia mal aos peixes.

Na imagem abaixo, (retiradas do artigo de PINTO PAIVA e CAMPOS MESQUITA) temos uma pintura[vi] de Alfredo Norfini, o artista da CTPN, que reproduz o interior do Laboratório Móvel da comissão, demonstrando os usos da ciência e da técnica no cotidiano na expedição científica:

 

FONTE: Pinto Paiva e Campos Mesquita (2013)

 

Abaixo, temos uma fotografia tirada por Dora von Ihering, em que Rodolfo está à frente do Laboratório Móvel, de gravata e chapéu:

 

FONTE: Pinto Paiva e Campos Mesquita (2013)

 

Atualmente o Brasil é um dos grandes produtores de peixes em cativeiro do mundo, tendo produzido mais de 722 mil toneladas de pescado confinado só em 2018, de acordo com relatório da Sociedade Nacional de Agricultura, instituição existente desde 1897 e que acompanha o desenvolvimento de técnicas e tecnologias agrícolas no Brasil.

O carro-chefe da aquicultura brasileira é a tilápia, peixe de origem africana, trazida do Congo e do Rio Nilo em 1956 pela diretoria de Pesca e Piscicultura do DNOCS, setor originado com o fim da CTPN enquanto comissão e seu estabelecimento como departamento permanente do órgão federal. A tilápia representou, em 2018, 55% da produção brasileira de peixes de cultivo, foram mais de 400 mil toneladas dessa espécie, que também tem sua pele utilizada em cirurgias plásticas de pessoas com queimaduras graves e construção de canal vaginal em pessoas transexuais em cirurgias de redesignação sexual realizadas por médicos-pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.



[i] Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará, professor substituto da Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza. E-mail de contato: emanuel_rodolpho@hotmail.com  

[ii] Retirar a hipófise (glândula situada na cabeça do peixe) e se prepara um estrato macerando-se as glândulas e diluindo em soro formando uma substância que é injetada nos peixes, essa substância contém hormônios sexuais que estimulam a ovulação e a produção de esperma, processo que só ocorreria na época da reprodução. Cavalcante, Erika Derquiane; Steinmuller, Maria Ida. Rodolpho von Ihering e a Comissão Técnica de Piscicultura do Nordeste: a descoberta da técnica da hipofisação no açude do bodocongó em Campina Grande-PB (1934-1935). Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. n.152, p. 129-155, 2017. pp.132

[iii] Filha de Rodolpho, que, além de assistente de pesquisa também trabalhou na divulgação dos trabalhos do pai e escreveu memórias da Comissão. Citar: Dora von Hering  e Rodolpho von Hering– Ciência e belezas dos sertões do Nordeste. Fortaleza: DNOCS, 1983.

[iv] MENEZES, Rui Simões. Revista do Instituto do Ceará. Saga da piscicultura no nordeste brasileiro, p. 258-265, 1992.

[v] IHERING, Rodolpho von. Boletim Biológico. A pesca no nordeste brasileiro, p. 65-72, 1933-1935.

[vi] PINTO PAIVA, Melquíades; CAMPOS MESQUITA, Pedro Eymard. Uma semente fecunda: Commissão Téchnica de Piscicultura do Nordeste (1932-1945). Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, volume CXXVII, 506 páginas, 2013. pp. 21-22.

 

Fontes:

IHERING, Rodolpho von. Boletim Biológico. A pesca no nordeste brasileiro, p. 65-72, São Paulo, 1933-1935.

BORGES VIEIRA, Benedito. Jornal O Campo. Criação do Peixe no Nordeste, p. 21-25, Rio de Janeiro, 1938.

 

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