Conspiração e corrupção: uma hipótese provável, por José Luís Fiori e William Nozaki

E como diz Braudel: o capitalismo não é uma organização ética nem religiosa, e não tem nenhum compromisso com qualquer tipo de moral privada ou pública que não seja a da multiplicação dos lucros e a da expansão contínua dos seus mercados.

Conspiração e corrupção: uma hipótese provável

por José Luís Fiori[1] e William Nozaki[2]

É comum falar de “teoria da conspiração”, toda vez que alguém revela ou denuncia práticas ou articulações políticas “irregulares”, ocultas do grande público, e que só são conhecidas pelos insiders, ou pelas pessoas mais bem informadas. E quase sempre que se usa esta expressão, é com o objetivo de desqualificar a denúncia que foi feita, ou a própria pessoa que tornou público o que era para ficar escondido, na sombra ou no esquecimento da história. Mas de fato, em termos mais rigorosos, não existe nenhuma “teoria da conspiração”. O que existem são “teorias do poder”, e “conspiração” é apenas uma das práticas mais comuns e necessárias de quem participa da luta política diária pelo próprio poder. Esta distinção conceitual é muito importante para quem se proponha analisar a conjuntura política nacional ou internacional, sem receio de ser acusada de “conspiracionista”. E é um ponto de partida fundamental para a pesquisa que estamos nos propondo fazer sobre qual tenha sido o verdadeiro papel do governo norte-americano no Golpe de Estado de 2015/2016, e na eleição do capitão Bolsonaro”, em 2018. Neste caso, não há como não seguir a trilha da chamada “conspiração”, que culminou com a ruptura institucional e a mudança do governo brasileiro. E nossa hipótese preliminar é que a história desta conspiração começou na primeira década do século XXI, durante o “mandarinato” do vice-presidente americano, Dick Cheney, apesar de que ela tenha adquirido uma outra direção e velocidade a partir da posse de Donald Trump, e da formulação da sua nova “estratégia de segurança nacional”, em dezembro de 2017.

No início houve surpresa, mas hoje todos já entenderam que essa nova estratégia abandonou os antigos parâmetros ideológicos e morais da política externa dos Estados Unidos, de defesa da democracia, dos direitos humanos e do desenvolvimento econômico, e assumiu de forma explícita o projeto de construção de um império militar global, com a fragmentação e multiplicação dos conflitos, e a utilização de várias formas de intervenção externa, nos países que se transformam em alvos dos norte-americanos. Seja através da manipulação inconsciente dos eleitores e da vontade política dessas sociedades; seja através de novas formas “constitucionais” de golpes de Estado; seja através sanções econômicas cada vez mais extensas e letais, capazes de paralisar e destruir a economia nacional dos países atingidos; seja, finalmente, através das chamadas “guerras híbridas” que visam destruir a vontade política do adversário, utilizando-se da informação mais do que da força, das sanções mais do que dos bombardeios, e da desmoralização intelectual dos opositores mais do que da tortura.

Desse ponto de vista, é interessante acompanhar e evolução dessas propostas nos próprios documentos americanos, nos quais são definidos os objetivos estratégicos do país e as suas principais formas de ação. Assim, por exemplo, no Manual de Treinamento das Forças Especiais Americanas Preparadas para Guerras Não-Convencionais, publicado pelo Pentágono em 2010, já está dito explicitamente que “o objetivo dos EUA nesse tipo de guerra é explorar as vulnerabilidades políticas, militares, econômicas e psicológicas de potências hostis, desenvolvendo e apoiando forças internas de resistência para atingir os objetivos estratégicos dos Estados Unidos”. Com o reconhecimento de que “em um futuro não muito distante, as forças dos EUA se engajarão predominantemente em operações de guerra irregulares”[3]. Uma orientação que foi explicitada, de maneira ainda mais clara, no documento no qual se define, pela primeira vez, a nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA do governo de Donald Trump, em dezembro de 2017. Ali se pode ler, com todas as letras, que o “combate à corrupção” deve ter lugar central na desestabilização dos governos dos países que sejam “competidores” ou “inimigos” dos Estados Unidos.[4] Uma proposta que foi detalhada no novo documento sobre a Estratégia de Defesa Nacional dos EUA, publicado em 2018, em que se pode ler que “uma nova modalidade de conflito não armado tem tido presença cada vez mais intensa no cenário internacional, com o uso de práticas econômicas predatórias, rebeliões sociais, cyber-ataques, fake news, métodos anticorrupção”.[5]

É importante destacar que nenhum desses documentos deixa a menor dúvida de que todas estas novas formas de “guerra não convencional” devem ser utilizadas – prioritariamente – contra os Estados e as empresas que desafiem ou ameacem os objetivos estratégicos dos EUA.

Agora bem, neste ponto da nossa pesquisa, cabe formular a pergunta fundamental: quando foi – na história recente – que o Brasil entrou no radar dessas novas normas de segurança e defesa dos EUA? E aqui não há dúvida de que cabem muitos fatos e decisões que foram tomadas pelo Brasil, sobretudo depois de 2003, como foi o caso da sua política externa soberana, da sua liderança autônoma do processo de integração sul-americano, ou mesmo, da participação no bloco econômico do BRICS, liderado pela China. Mas não há a menor dúvida de que a descoberta das reservas de petróleo do pré-sal, em 2006, foi o momento decisivo em que o Brasil mudou de posição na agenda geopolítica dos Estados Unidos. Basta ler o Blueprint for a Secure Energy Future, publicado em 2011, pelo governo de Barack Obama, para ver que naquele momento o Brasil já ocupava posição de destaque em 3 das 7 prioridades estratégicas da política energética norte-americana: (i) como uma fonte de experiência para a produção de biocombustíveis; (ii) como um parceiro fundamental para a exploração e produção de petróleo em águas profundas; (iii) como um território estratégico para a prospecção de Atlântico Sul[6].

A partir daí, não é difícil de rastrear e conectar alguns acontecimentos, sobretudo a partir do momento em que o governo brasileiro promulgou – em 2003 – sua nova política de proteção dos produtores nacionais de equipamentos, com relação aos antigos fornecedores estrangeiros da Petrobras, como era o caso, por exemplo, da empresa norte-americana Halliburton, a maior empresa mundial em serviços em campos de petróleo , e uma das principais fornecedores internacionais das sondas e plataformas marítimas, e que havia sido dirigida, até o anos 2000, pelo mesmo Dick Cheney que viria a ser o vice-presidente mais poderoso da história dos Estados Unidos, entre 2001 e 2009. A Odebrecht, a OAS e outras grandes empresas brasileiras entram nessa história, a partir de 2003, exatamente no lugar dessas grandes fornecedoras internacionais que perderam seu lugar no mercado brasileiro. Cabendo lembrar aqui o início da complexa negociação entre a Halliburton e a Petrobrás[7], em torno à compra e entrega das plataformas P 43 e P 48, envolvendo 2,5 bilhões de dólares[8], começou na gestão de Dick Cheney e se estendeu até 2003/4, com a participação do Gerente de Serviços da Petrobrás, na época, Pedro José Barusco,  que depois se transformaria depis no primeiro delator conhecido da Operação Lava-Jato.[9]

Nesse ponto, aliás, seria sempre muito bom lembrar a famosa tese de Fernand Braudel, o maior historiador econômico do século XX, de que “o capitalismo é o antimercado”, ou seja, um sistema econômico que acumula riqueza através da conquista e preservação de monopólios, utilizando-se de todo e qualquer meio que esteja ao seu alcance. Ou ainda, traduzindo em miúdos o argumento de Braudel: o capitalismo não é uma organização ética nem religiosa, e não tem nenhum compromisso com qualquer tipo de moral privada ou pública que não seja a da multiplicação dos lucros e a da expansão contínua dos seus mercados. E isto é que se pode observar, mais do que em qualquer outro lugar, no mundo selvagem da indústria mundial do petróleo, desde o início de sua exploração comercial do petróleo, desde a descoberta do seu primeiro poço pelo “coronel” E. L. Drake, na Pensilvânia, em 1859.

Agora bem, voltando ao eixo central da nossa pesquisa e do nosso argumento, é bom lembrar que este mesmo Dick Cheney que vinha do mundo do petróleo, e teve papel decisivo como vice-presidente de George W. Bush, foi quem concebeu e iniciou a chamada “guerra ao terrorismo”, conseguindo o consentimento do Congresso Americano para iniciar novas guerras, mesmo sem aprovação prévia do parlamento; e o que é mais importante, para nossos efeitos, conseguiu aprovar o direito de acesso a todas as operações financeiras do sistema bancário mundial, praticamente sem restrições, incluindo o velho segredo bancário suíço, e o sistema e pagamento europeus, o SWIFT.

Por isso, aliás, não é absurdo pensar que tenha sido por esse caminho que o Departamento de Justiça norte-americano tenha tido acesso às informações financeiras que depois foram repassadas às autoridades locais dos países que os Estados Unidos se propuseram a desestabilizar com campanhas seletivas “contra a corrupção”. No caso brasileiro, pelo menos, foi depois desses acontecimentos que ocorreu o assalto e o furto de informações geológicas sigilosas e estratégicas da Petrobras, no ano de 2008, exatamente dois anos depois da descoberta das reservas petrolíferas do pré-sal brasileiro, no mesmo ano em que os EUA reativaram sua IV Frota Naval de monitoramento do Atlântico Sul. E foi no ano seguinte, em 2009, que começou o intercâmbio entre o Departamento de Justiça dos EUA e integrantes do Judiciário, do MP e da PF brasileira para tratar de temas ligados à lavagem de dinheiro e “combate à corrupção”, num encontro que resultou na iniciativa de cooperação denominada Bridge Project, da qual participou o então juiz Sérgio Moro.

Mais à frente, em 2010, a Chevron negociou sigilosamente, com um dos candidatos à eleição presidencial brasileira, mudanças no marco regulatório do pré-sal, numa “conspiração” que veio à tona com os vazamentos da Wikileaks, e que acabou se transformando num projeto apresentado e aprovado pelo Senado brasileiro. E três anos depois, em 2013, soube-se que a presidência da República, ministros de Estado e dirigentes da Petrobras vinham sendo alvo, há muito tempo, de grampo e espionagem, como revelaram as denúncias de Edward Snowden. No mesmo ano em que a embaixadora dos EUA que acompanhou o golpe de Estado do Paraguai contra o presidente Fernando Lugo foi deslocada para a embaixada do Brasil. E foi exatamente depois desta mudança diplomática, no ano de 2014, que começou a Operação Lava Jato, que tomou a instigante decisão de investigar as  propinas pagas aos diretores da Petrobrás,  exatamente a partir  de 2003, deixando fora portanto os antigos fornecedores internacionais, no momento exato em que concluíam as negociações da empresa com a Halliburton , em trono da entrega das plataformas P 43 e P48.

Se todos estes dados estiverem corretamente conectados, e nossa hipótese for verossímel, não é de estranhar que depois de cinco anos do início desta “Operação Lava-Jato”, os vazamentos divulgados pelo site The Intercept Brasil, dando notícias da parcialidade dos procuradores, e do principal juiz envolvido nessa operação, tenham provocado uma reação repentina e extemporânea dois principais acusados desta história que se homiziaram, praticamente, nos Estados Unidos. Provavelmente, em busca das instruções e informações que lhe permitissem sair das cordas, e voltar a fazer com seus novos acusadores o que sempre fizeram no passado, utilizando-se de informações repassadas para destruir seus adversários políticos. Entretanto, o pânico do ex-juiz e seu despreparo para enfrentar a nova situação fizeram-no comportar-se de forma atabalhoada, pedindo licença ministerial e viajando uma segunda vez para os Estados Unidos, e com isto tornou público o seu lugar na cadeia de comando de uma operação que tudo indica que possa ter sido a única operação de intervenção internacional bem-sucedida – até agora – da dupla John Bolton e Mike Pompeu, os dois “homens-bomba” que comandam a política externa do governo de Donald Trump.  Uma operação tutelada pelo norte-americanos e avalizada pelos militares brasileiros.

Por isso, se nossa hipótese estiver correta, não há a menor possibilidade de que as pessoas envolvidas neste escândalo sejam denunciadas e julgadas com imparcialidade, porque todos os envolvidos sempre tiveram pleno conhecimento e sempre aprovaram as práticas ilegais do ex-juiz e de seu “procurador-assistente”, práticas que foram decisivas para a instalação do capitão Bolsonaro na Presidência da República. O único que lhes incomoda neste momento é o fato de que sua “conspiração” tenha se tornado pública, e que todos tenham entendido quem é o verdadeiro poder que está por trás dos chamados “Beatos de Curitiba”.

24 de julho de 2019

[1] Professor titular do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ); pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).

[2] Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).

[3] U.S. Department of the Army. U.S.Army Special Forces Unconventional Warfare Training Manual. Headquarters, Washington D.C., 2010. Disponível em: <https://publicintelligence.net/u-s-army-special-forces-unconventional-warfare-training-manual-november-2010/> Acessado em 22/07/2019.

[4] U.S. Department of Defense. National Security Strategy, Washington D.C., 2017. Disponível em: <https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2017/12/NSS-Final-12-18-2017-0905.pdf> Acessado em 22/07/2019.

[5] U.S. Department of Defense. National Defense Strategy, Washington D.C., 2018. Disponível em: <https://dod.defense.gov/Portals/1/Documents/pubs/2018-National-Defense-Strategy-Summary.pdf> Acessado em 22/07/2019.

[6] U.S. Department of Energy. Blueprint for a Secure Energy Future, Washington D.C., 2011. Disponível em: < htt”Os laços Petrobras Halliburton, 25/02/04ps://obamawhitehouse.archives.gov/issues/blueprint-secure-energy-future> Acessado em 22/07/019.

[7]    “Petrobrás fecha negócio bilionário com Halliburton,   www.dci.com.br, 20/04/04

[8]  “Os laços Petrobrás Halliburton, 25/02/2004, www.istoédinheiro.com.br

[9] “Veja na íntegra a delação premiada de Pedro Barusco”, https://poliitca.estadao.com.br, 05/02/2015

William Nozaki

8 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Não acontecerá evolução da civilidade enquanto aquele país, EUA, continuar aterrorizando e vandalizando estados nacionais que baseiam sua Economia no dinheiro dele, o dólar. E se se pensar nos países de moeda teuto-europeia, o quadro não é tão violento mas não é menos nefasto.

    O problema é o capitalismo. A única reforma que poderia minimizar os danos do capitalismo à pessoa comum seria se estados nacionais começassem a regular a atividade empresarial privada. (É óbvio que não dá para contar com algo do tipo “empresário privado consciente”.) Mas para isso é necessário que tenha administradores públicos sem viés privatista. Não consigo enxergar salvação para sociedades que permitem relações capitalistas, que permitem que a administração pública seja exercida por pessoas ligadas à iniciativa privada… E afinal, tirando a repetição papagaia, por que mesmo a gente afasta, a priori, as alternativas socialista?

  2. Complôts, manipulações, maquinações, orquestrações… cada vez mais frequentes neste período de história … com o desenvolvimento das tecnolgias muy avanzadas, desde a primeira guerra mundial…
    A questão sempre foi, “quem” consegue bancar esta ou aquela “conspiração”… “Quem”, qual organização poderosa — consegue abafar todas as consequências, a despeito de que muitas revelações foram dadas na mídia; todos aqueles das classes mais esclarecidas ficaram sabendo muito bem, etc… como nos episódios de extermínio de Kennedy (e Kennedy 2, e Kennedy 3) (vide marc chapman =/= adelio prado)…
    assim como no complôt do bin laden — !!
    A questão afinal é a de que as agências estatais ianques (pentágono, depto de estado, cia) não representam de fato a nação ianque, nem mesmo seu estado republicano constituído… os EUA também são “infiltrados” — é o que dizem seus próprios cidadãos!

    http://governo-washington.blogspot.com/2007/08/quem-est.html
    http://governo-washington.blogspot.com/2007/08/10-rubicon.html

  3. A única ressalva que faço ao artigo é que a estratégia americana sempre foi a mesma desde a Doutrina Monroe. Não começou no governo Bush. O apoio à Ditadura Militar, a ação do FMI e do Banco Mundial nos anos 90… tudo parte da estratégia imperialista americana. Novas táticas surgiram, mas o objetivo sempre foi o mesmo.

  4. Perfeito . Concordo em tudo ,e principalmente no que toca , serem julgados e condenados . Estão todos envolvidos e atolados na lama dos dólares americanos .

  5. Nada disto é novo como podemos observar na deposição de Mosadegh ocorrida na década de 50, entronizando o Xá da Pérsia alinhado com os EUA e tornando o Iram grande produtor de petróleo. Aqui estivemos fora do radar até o governo Lula e a descoberta do petróleo abundante e barato do pré-sal. A considerar também a disputa da China como país hegemônico

  6. Excelente demonstração e validação de dados, parabéns aos autores.
    Faltou, a meu ver, um termo nessa equação que é “precarização completa dos recursos humanos” para que não haja no futuro próximo e distante a menor chance de insurgência. Isso inclui, universidades, institutos, CAPES, INPE, IBGE, CENPES, IPEN, ITA, etc., ou seja, qualquer ameaça de autodeterminação ou autodefesa.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador